Jussara Lucena, escritora

Textos

Somos todos filhos da mesma mãe gentil

Sob a luz tênue e apoiado sobre sua escrivaninha, João Pedro Pessoa observava a folha de papel em branco a sua frente. Os pensamentos pareciam confusos e assim ele não conseguia escrever a primeira linha do editorial do jornal da manhã seguinte. Foi para frente do cavalete de tipos, quem sabe com o componedor na mão as ideias surgissem. Não adiantou. Lembrava da imagem do Navio de Sua Majestade Volage desaparecendo no horizonte e levando a bordo Pedro.
Pessoa havia acompanhado o dia-a-dia da corte desde que Dom João chegou em 1808. Ele ainda era um garoto que compunha na tipografia do pai, antes de torna-se um dos jornalistas mais confiáveis do Rio de Janeiro. Lembrava da figura do príncipe Pedro, um garoto de dez anos que parecia assustado e cansado. Enquanto o jovem príncipe caminhava pela calçada enfeitada, na saída do porto, ofereceu-lhe um brinquedo, um pião, não o seu favorito, mas o feito pelo filho da escrava do tabuleiro que trabalhava em frente a gráfica. O príncipe estranhou o gesto, olhou para a mãe, Dona Carlota, que parecia envaidecida com o evento, mesmo de lenço na cabeça, que nem reparou no menino com seu novo brinquedo. Guardou-o consigo.
Com certeza o príncipe nunca lembrou do fato, pois não o mencionou em nenhum dos encontros que tiveram, mas o jornalista guardou na memória aquele olhar perdido e assustado do menino. Talvez fosse assim que Pedro tenha se sentido, perdido e assustado, nos dias que passou no HSM Warespit atracado ao Porto do Rio de Janeiro, quem sabe olhando para uma terra que não voltasse a ser sua, enquanto aguardava a viagem de volta à Portugal.
Pensando em Pedro, que pretendia vender uma imagem heroica, e de certa forma foi mesmo um herói, lembrou-se das marchas e hinos compostos para celebrar uma independência que ainda não ocorrera por completo. A volta do imperador para buscar o trono de volta confirmava a ainda forte ligação com a antiga metrópole.
O que pensariam Marcos Portugal e José Maurício Nunes Garcia se ainda estivessem por aqui? Foram tantas disputas entre os dois. Imaginar que eles partiram desta vida para outra melhor sem ter a certeza de como seria o futuro desse país, qual a ideologia se tornaria vencedora deve ter sido frustrante no leito de morte dos dois. – Analisava Pessoa.
Muitos prometeram uma festa para comemorar a partida de Dom Pedro, outros se sentiram consternados. Qual hino seria entoado na cerimônia? A marcha de Francisco Manuel da Silva, discípulo de Nunes Garcia ou o hino de exultação ao imperador de Marcos Portugal?
O jornalista tinha simpatia por Dom Pedro, mas detestava muitos dos que o rodeavam. Quem sabe com Pedro buscando o trono de Portugal as coisas realmente se resolvessem no Brasil e a independência acontecesse de fato.
Pessoa apostou na melodia de Manoel da Silva. Assim, decidiu apresentar um poema, algo que se perpetuasse, sem entrar no mérito das virtudes do Imperador. Ele também sempre acreditou que o hino de uma nação deveria permitir que seu povo o entoasse a altos brados, falando com o coração. Ouvir um hino cantado por líricos poderia parecer culto, mas não representa o pensamento ou a vontade de um povo. – Tinha certeza o jornalista.
João Pedro Pessoa acreditava que, embora o disse-me-disse fosse a melhor foram de espalhar uma informação, pois a maior parte da população era por assim dizer analfabeta, a palavra escrita chegava até aqueles que conseguiam influenciar mais significativamente o governo e formar opiniões. Erroneamente, só os mais abastados se julgavam capazes de entender e fazer política. Quem tinha o poder da pena ou da tipografia também poderia contar a sua versão da história.
Assim, decidiu começar uma provocação. A cada dia incluiria entre as colunas do jornal uma das estrofes de seu poema. Com certeza surgiriam curiosos. Guardaria o motivo em segredo até a publicação da obra completa. Reuniria um grupo de amigos músicos, alugaria a sala do Imperial Theatro São Pedro de Alcântara. O local que recebera tantas obras de Marcos Portugal agora daria lugar ao seu poema e a música de Francisco, amigo de infância de Pessoa.
No editorial daquele dia, Pessoa acabou por incluir apenas a história de quando encontrou o pequeno príncipe, futuro Imperador, no cais do porto, não emitindo opinião sobre a decisão da volta à Portugal. No último parágrafo, comprometeu-se a abordar o tema quando os ânimos estivessem menos exaltados, já que as discussões e opiniões apaixonadas sobre o tema levavam muitas vezes a desfechos trágicos, violentos. Por fim, convidou os leitores para que apreciassem a primeira estrofe do seu poema e aquecessem as gargantas.
Foi o que bastou para despertar a curiosidade de poetas, escritores, jornalistas e músicos da cidade. Todos tentavam decifrar a mensagem por detrás daquelas linhas. Já aguardavam a próxima edição para tentar juntar as peças do possível quebra-cabeças.
Não era o objetivo de Pessoa, mas aumentou a tiragem de novos exemplares do jornal. Também recebeu muitos convites para tomar um café ou uma bebida, na esperança que ele deixasse escapar algo sobre as mensagens que guardavam um segredo, segundo a boca do povo.
Soube que o Juiz Ovídio Saraiva de Carvalho tinha objetivo semelhante, o próprio Francisco lhe havia dito, resolveu acelerar a apresentação de seus versos.
Reuniu um grupo de amigos. O ensaio aconteceria apenas poucas horas antes da estreia para não estragar a surpresa, cada um recebeu apenas uma de quatro das sete estrofes do poema. As últimas três, o jornalista guardava a sete chaves. Só uma outra pessoa conhecia o conjunto todo e a associação com a melodia: o maestro Júlio da Conceição.
Como uma boa parte da sociedade parecia contrária ao Imperador e como Pessoa ainda não havia se posicionado em relação a ausência de Pedro, muitos acreditaram que ele fosse um simpatizante dos portugueses, por outro lado, os portugueses e seus simpatizantes entenderam que Pessoa queria o Imperador de volta e o fim dos laços com Portugal.
Certa manhã, o vidro de uma das janelas da gráfica havia sido quebrado. No interior da oficina, preso a pedra, havia um bilhete: “Não brinque com fogo! ”. Não deu importância, acreditava no ditado que dizia que cão que ladra não morde. Já estava acostumado às ameaças daqueles que discordavam de sua opinião, expressa tantas e tantas vezes no seu diário. Publicou mais uma parte do poema:
E, se o inimigo nos ameaça com a morte,
Acreditas na força que tem teu povo,
Que não abandona a Pátria a própria sorte.
A noite da apresentação estava chegando. Tinham resolvido antecipar o ensaio. Mais cedo Pessoa havia apanhado as chaves do teatro, porém nem se preocupou em pedir ao cuidador que guardasse segredo do fato.
Na hora combinada o maestro Júlio da Conceição bateu na porta da tipografia. Júlio cantarolava algumas estrofes e Pessoa recomendou o silêncio. Os músicos e cantores aguardavam ansiosamente pela dupla em frente ao teatro fechado. Enquanto isso, Pessoa pediu a Júlio que o acompanhasse até a Capela Imperial. Lá ele faria uma oração e um agradecimento.
Ajoelhado no banco da igreja, lembrou que o local havia sido palco de grandes acontecimentos envolvendo a família real e as pessoas mais próximas. Mais uma vez lhe veio à mente a rivalidade entre o Padre José Maurício Nunes Garcia, que perdeu o posto de diretor da Capela para Marcos Portugal. Hoje eles já não faziam mais diferença, a história continuava a ser contada por outros que os substituíram. Talvez, dali a alguns anos a ausência dele mesmo não fosse percebida, pensava Pessoa. Depois, pediu para Nossa Senhora do Carmo que iluminasse o seu caminho.
Pessoa pediu licença a Júlio e subiu até o mezanino onde estava o órgão da igreja. Tocou uma parte do móvel que suportava o instrumento e um compartimento se abriu. Lá depositou duas partituras do hino sobrepondo o poema completo.
Retomaram o caminho da Praça da Constituição e estranhamente as ruas estavam muito vazias. Entreolharam-se e caminharam em silêncio por alguns instantes. Foram surpreendidos por um grupo de homens armados que os amordaçaram, encapuzaram e amarraram as mãos. Depois foram jogados no fundo de uma carroça.
Durante vários dias, foram feitas buscas, capitaneadas pelo próprio Intendente e não se descobriu nada sobre o paradeiro dos dois. Os músicos e cantores, assustados, reuniram-se e destruíram o material em seu poder.
Depois de alguns dias, dois corpos foram encontrados na Bahia do Rio de Janeiro.
O tempo passou e hinos foram entoados, letras surgiram e foram se modificando. Nunca mais se falou dos dois sujeitos. Até que na reforma da antiga Capela Imperial, em 1905, ordenada pelo Cardeal Arcoverde, o manuscrito foi encontrado no interior do órgão e depois entregue ao então Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil. Afonso Pena fora conselheiro imperial e sentiu-se emocionalmente envolvido com o poema. Há quem diga que alguns versos foram utilizados na letra do Hino que se manteve vivo no período imperial e aceito também pelos republicanos, agora cantado com muito ar nos pulmões e imenso orgulho, afinal temos diferenças, mas somos todos filhos da mesma mãe gentil.

Texto que faz parte da Antologia Um hino ao Império, da série Glorioso Império do Brasil.

Adnelson Campos
24/10/2018

 

 

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